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Texto: Jacqueline Nóbrega
Publicado em 09.10.2017

Basta um passeio por Fortaleza para se deparar com dezenas de modelos de automóveis. Nos dias atuais, é possível perceber, aliás, o que gera críticas, que a cidade tem sido construída para atender as necessidades dos proprietários de carros em detrimento das demandas de pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo. No entanto, curioso é imaginar que o primeiro veículo a motor, produto da fábrica Rambler, desembarcou em solo cearense há 108 anos, em março de 1909, de acordo com informações do livro "Coisas que o tempo levou" (1939), de Raimundo de Menezes. Naquele ano, aliás, as pessoas assistiram com estranheza ao desembarque em solo cearense do veículo de segunda mão, proveniente dos Estados Unidos e adquirido por dois cearenses, Meton de Alencar e Júlio Pinto, sogro e genro respectivamente. O valor pago pela dupla foi de 8:000$000 (oito contos de réis).

Em 1909, em Fortaleza, havia apenas três grandes avenidas. Não havia sinalização e o que mais circulava nas ruas eram os bondes puxados por burros

O trajeto do automóvel entre a Alfândega, onde chegou, até o Cassino Cearense (Cinema Júlio Pinto), foi feito puxado por um jumento, já que ninguém sabia como o funcionamento do motor acontecia. Uma procissão de curiosos foi formada em torno do animal e do meio de transporte, que chamava atenção pelo barulho que fazia e pelo apito estridente da buzina.

Foram necessários dias de estudo para entender como o motor do automóvel funcionava. Na primeira saída, andou alguns metros até estancar. Sempre que era colocado na rua para rodar, o automóvel chamava a atenção de quem passava. Assim, passaram a realizar experiências durante a madrugada. Quase sempre o veículo enguiçava, e era necessário desmontá-lo no meio da rua para verificar o problema da vez.

De acordo com o historiador Nirez, essa é oficialmente a foto do primeiro automóvel que chegou em Fortaleza, em 1909 Foto: Arquivo Nirez
No livro "Coisas que o tempo levou", Raimundo de Menezes mostra a foto do que seria o primeiro carro. Na imagem, Júlio Pinto e Meton de Alencar. No veículo é possível ver o nome Piccolo e o primeiro carro era um Rambler de 2ª mão FONTE: Livro "Coisas que o tempo levou".

Uma história curiosa citada no livro "Coisas que o tempo levou" é de quando a tampa do radiador do carro foi perdida na estrada de Messejana. Júlio Pinto logo anunciou nos jornais da época que gratificaria com generosidade quem devolvesse a peça. Uma série de pessoas se interessou em achar o produto, mas, como não sabiam do que se tratava, levavam os mais variados objetos de ferro que tinham encontrado por acaso na estrada.

Devido ao barulho e seus holofotes, o carro foi considera "mal-assombrado" pela população

Depois de muito rodar, os pneus do veículo ficaram gastos e foi preciso substituí-los, mas não se sabia onde encontrar a peça, já que naquela época, a cidade não estava preparada para receber carros e nem sequer tinha um mercado de peças automotivas. A única opção foi substituir os pneus por rodas de madeira com aros de ferro. Devido ao barulho que causava, a alternativa não foi tão bem aceita.

Além de ir até Messejana, o carro chegou a ir até Canindé, durante as tradicionais festas religiosas, viajando de Fortaleza até Itaúna dentro de um trem e dali em diante por uma estrada, ainda de acordo com Raimundo de Menezes. O apelido que o carro ganhou entre a população foi de "mal-assombrado", devido aos holofotes e à barulheira que causava.

Em uma de suas muitas andanças, o veículo também acabou derrubando um muro, quando o motorista tentava desviar de um pedestre. A primeira batida não trouxe grandes consequências, apenas o prejuízo material.

Depoimento do jornalista Gustavo Barroso

No livro "Consulado da China", sobre a experiência de andar no primeiro automóvel

A última lembrança que conservo da Fortaleza daqueles ótimos tempos é a do primeiro automóvel que ali apareceu e causou sensação. Júlio Pinto, dono da Casa Palhabote e espírito empreendedor, comprou-o em segunda mão. Tinha não sei quantas manivelas externas de freios, mudança de velocidade e marcha a ré. Entregaram a direção a um mecânico, o português Rafael, mais tarde meu chofer na Secretaria do Interior. Júlio Pinto convidou-me, como seu amigo e jornalista, para o passeio inaugural. Ao lado do condutor, ia o velho John Petter Bernard, dinamarquês e fabricante de malas. No traseiro, Júlio e eu. Saímos aos pinotes, com uma barulheira infernal e soltando rolos de fumaça pelo pontiagudo calçamento da antiga Fortaleza. Quase púnhamos as tripas pela boca. As janelas enchiam-se de gente curiosa. Grupos formavam-se às esquinas. Corriam pessoas de toda parte. De repente, em frente ao Clube Iracema, o carro empacou, enguiçado, bufando. Rafael não lhe deu jeito. John sujou-se todo e nada conseguiu. Fui até a Praça do Livramento e arranjei, com um velhote que vendia água, dois jumentos que puxaram o automóvel até a garagem, com uns moleques que gritavam atrás: 'Moço, me dá um tostão pra ajudar a empurrar'".

Memórias da infância

Os irmãos Júlio Pinto Neto, Marilena Alencar Pinto Campos e Roberto Alencar Pinto são netos de Júlio, e apesar de não terem conhecido o avô pessoalmente (Júlio Pinto faleceu em 1916), eles relembram com carinho as histórias do homem, que consideram um empreendedor daquele período. "Sempre soubemos que o vovô Júlio tinha importado o primeiro automóvel para o Ceará e que tinha sido um sucesso na cidade. Não chegamos a conviver com ele, mas a história foi passada pelos nossos pais", explica Marilena.

"Sabemos muito pouco da origem do nosso avô. Quando meu pai (Raymundo de Alencar) nasceu, em três meses meu avô faleceu, muito jovem ainda. Nosso pai é quem contava as histórias do carro, quando, por exemplo, os pneus ficaram velhos e eles tiveram que improvisar com rodas de ferro e que faziam muito barulho. Meu pai dizia que eles usavam o carro em cima do trilho do bonde, pois era a mesma bitola", explica Júlio Pinto Neto.

Da esquerda pra direita: os irmãos Marilena Alencar Pinto Campos, Roberto Alencar Pinto e Júlio Pinto Neto falam com orgulho da visão empreendedora do avô Júlio Pinto Foto: Arquivo Pessoal

Ele ainda ressalta a importância de Clóvis Meton de Alencar, cunhado de Júlio Pinto, que na época foi essencial para o funcionamento do automóvel. "O meu tio Clóvis, inclusive, conviveu muito com a gente. Ele viveu muitos anos e trabalhava na área de motores da Cimaipinto". A Cimaipinto, aliás, foi uma das primeiras concessionárias da cidade, que vendia carros da marca Chevrolet, e era de propriedade de seis dos nove filhos de Júlio Pinto.

Meu pai contava que meu avô tinha sido precursor de muitas coisas no Ceará
Roberto Pinto

"Quando o primeiro carro chegou em Fortaleza, o meu tio Clóvis se aproximou do veículo porque ele consertava motores estacionários, de locomotivas. Ele era mecânico de locomotiva e ajudou a fazer esse automóvel funcionar. Antes das locomotivas, ele trabalhou com motores marítimos", acrescenta Júlio Pinto Neto.

Naquela época, em 1909, Júlio Pinto também era o proprietário do Cassino Cearense. "Meu pai contava que meu avô tinha sido precursor de muitas coisas no Ceará. Ele teve uma fábrica de pregos, de mosaicos, a primeira fábrica de gelo, que funcionava junto com o Cassino Cearense. Meu avô era muito criativo".

"Ele era ousado e tinha visão de empreendedor já naquela época", acrescenta Roberto.

"Também gostaria de registrar a força de minha avó, dona Júlia. Ela criou esses nove homens depois da morte do marido com muita união e rigidez. Meton de Alencar, pai dela, é descendente da família de José de Alencar. A origem da família é na divisa do Ceará com Pernambuco", finaliza Júlio.

Em pé, da esquerda para direita: Fernando de Alencar Pinto, Júlio de Alencar Pinto, Raymundo de Alencar Pinto e Meton de Alencar Pinto. Sentados, da esquerda para direita, estão Danilo de Alencar Pinto e Aloysio de Alencar Pinto. Os irmãos eram responsáveis pela Cimaipinto Foto: Arquivo pessoal da família
Os netos falam com orgulho de Júlia de Alencar, filha de Meton de Alencar. Eles são da mesma família do escritor José de Alencar. O retrato foi passado de Raymundo de Alencar para sua filha, Marilena Alencar Pinto Campos Foto: Arquivo pessoal da família

Automóveis despertam desejo

Apesar de existirem poucas informações sobre a chegada do primeiro automóvel, há mais de cem anos, o mestre em História, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autor do livro "Fortaleza Belle Époque" Sebastião Rogério de Barros da Ponte ressalta que naquele ano, em 1909, além do automóvel, o cinema também foi introduzido no Ceará. "Três dos quatro primeiros cines de Fortaleza foram inaugurados: o Júlio Pinto, Rio Branco e Cassino. O primeiro, o Cine Di Maio, surgira apenas um ano antes, em 1908. Essas maquinarias modernas, que espantavam e encantavam os citadinos, completam um rol de novidades urbanas que vinham sacudindo Fortaleza desde os anos 80, como os bondes, o telefone, o Passeio Público, a Padaria Espiritual e o mercado de ferro importado da Europa (Mercado dos Pinhões, hoje). Com todos esses equipamentos que só os grandes centros possuíam, definitivamente Fortaleza tornara-se, àquela altura, uma cidade moderna", comenta.

Júlio Pinto, nascido em Icó e parente de Nogueira Accioly, era comerciante e dono de um dos cinemas mais populares da cidade, o Cassino Cearense Foto: Arquivo pessoal

Quando o primeiro carro chegou em Fortaleza, na cidade havia apenas três grandes avenidas: Imperador, Duque de Caxias e Dom Manoel. Também não havia sinalização, pois que o que mais circulava nas ruas eram os bondes e eles eram lentos, já que eram puxados por burros. "Com a advinda dos automóveis e, logo depois, dos bondes elétricos, em 1913, vieram também os primeiros atropelamentos, fazendo com que as regras de trânsito urbano fossem se estabelecendo paulatinamente. O guarda de trânsito veio primeiro que o semáforo, mas somente a partir dos anos 1920", explica o mestre.

Sebastião destaca que para andar de bonde era exigido paletó, gravata e sapatos. Ou seja, era um transporte coletivo mais utilizado pela elite da época, já que os mais humildes não tinham essa indumentária completa. "Os bondes encurtaram as distâncias, disseminaram a paquera entre as mocinhas nas janelas das casas e os passageiros e provocaram a extensão do calçamento até os bairros que as linhas alcançavam".

A elite, na época, viajava para a Europa e via os automóveis rodando por lá. Os que não tinham a oportunidade de viajar, admiravam o meio de transporte nas revistas ou escutavam os registros eufóricos de quem tinha se deparado com um. O apelo dos carros soava irresistível: eram mais rápidos, confortáveis e modernos que as charretes e cabriolets (tipo de carruagem). "Ademais, se uma família rica comprava um, logo seu vizinho abonado deveria ter o seu também. A competição era grande para ver quem podia ter um carro, possuir a casa mais elegante, viajar mais vezes à Europa, dar a festa mais suntuosa e até erigir o túmulo mais imponente no Cemitério São João Batista", finaliza Sebastião.

Museu do Automóvel

Quem gosta de admirar carros antigos, pode visitar o Museu do Automóvel, em Fortaleza. Atualmente estão expostos 55 carros de maneira permanente no local. De acordo com o presidente do Museu, Magno Câmara, os modelos estão sempre sendo renovado pelos colecionadores.

Os carros mais antigos do museu são da década de 20, da marca Ford. Dois carros expostos no local são icônicos: são dois veículos funerários antigos. O primeiro Cadillac conversível do Ceará, do ano de 1954, também pode ser encontrado no endereço, assim como veículos que participaram de novelas e séries da Rede Globo. Em 2016, o Museu do Automóvel celebrou 35 anos.


Museu do Automóvel

Rua Jornalista César Magalhães, 862 - Guararapes
Terça a sexta-feira, de 8h às 18h | sábados e domingos, das 9h às 18h
Entrada: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia)
Telefone: (85) 3273.3129

Modernização do Ceará

O mestre em História Leonardo Ibiapina Beviláqua e autor da dissertação "O que vai pela cidade: Automobilidade e crimes de trânsito em Fortaleza na década de 1920" explica que optou por trabalhar com os anos 20 na sua pesquisa porque o número de carros no Estado na primeira década ainda era muito baixo. "A baixa quantidade de carros, está vinculada ao valor de produtos importados na época, somada à condição periférica do Brasil no capitalismo mundial. Pelo que percebi, uma boa parte dos carros estava nas mãos de poucas pessoas. Eram proprietários das 'garagens' que alugavam os veículos como espécie de táxis", pontua.

Os automóveis dividiam o espaço da rua com pessoas, animais, carroças, carrinhos de mão, trabalhadores braçais e também os bondes e seus trilhos

Leonardo ainda frisa que a modernização do Ceará tem, sim, ligação com a automobilidade. "Os defensores de uma cidade moderna associavam não só a existência do carro nas ruas como indício de modernidade, mas também a forma de lidar com sua circulação. Ou seja, saber andar nas ruas, observar o movimento do tráfego, andar pelas calçadas, desobstruir as vias e deixá-las livres para os carros também eram ideias que estavam em voga. Não bastava modernizar a estrutura urbana, mas também 'civilizar os hábitos', como diziam na época".

O historiador explica que nos anos 20 as ruas ainda guardavam traços anteriores à chegada dos carros, com buracos, vias estreitas e poças de lama. Os automóveis dividiam o espaço da rua com pessoas, animais, carroças, carrinhos de mão, trabalhadores braçais e também os bondes e seus trilhos".

"Pelo que se falava nos processos criminais por atropelamento, não havia qualquer sinalização por meio de placas. Já o Regulamento de 1925 cita sinais feitos com cassetetes pelos guardas e seus significados. No mesmo regulamento, havia diferenciação da velocidade máxima permitida por via. Entretanto, não havia como mensurar essa velocidade em automóveis que, até então, não pareciam possuir velocímetro", acrescenta.