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A arte de desenhar letras

É cada vez mais comum ver residências e estabelecimentos comerciais, sejam restaurantes ou lojas, que apostam em paredes com frases feitas à mão que dão um ar descolado ao endereço. Descubra quem são os profissionais que atuam no mercado local e por que ele tem decolado

Texto: Jacqueline Nóbrega

Com o boom de estabelecimentos comerciais com ar descolados, que estão à procura de profissionais que escrevem frases ou o cardápio em suas paredes, o lettering começou a ganhar mais força em Fortaleza. Apaixonados por decoração também têm apostado na técnica para trazer um diferencial aos seus endereços. O lettering nada mais é do que a arte de desenhar letras. Quem explica a diferença entre a técnica, a tipografia e a caligrafia é o professor do curso de design da Universidade Federal do Ceará Leonardo Buggy.

"Tipografia, lettering e caligrafia são três expressões gráficas distintas possíveis de serem empregadas por uma mesma língua simultaneamente. Hoje, devido à profusão tecnológica de ferramentas da comunicação visual, o aspecto imagético das letras resultantes de cada uma dessas expressões não é plenamente suficiente para determinar sua origem. É necessário que se observe técnicas e procedimentos empregados na produção de cada letra para determinar sua origem. As letras da tipografia e do lettering são construídas. Ou seja, seus contornos internos e externos são desenhados com o auxílio das mais diversas ferramentas, como lápis, caneta, pincel, computador etc. Posteriormente, o interior desses desenhos é preenchido".

"Já na caligrafia, algo diferente ocorre; as letras são escritas. Suas formas são determinadas integralmente por movimentos específicos e contínuos de instrumentos, como penas caligráficas e pincéis. O projeto de letras caligráficas não apresenta distinção entre linhas de construção e preenchimento. Nos últimos anos, designers brasileiros têm incorporado o uso combinado de tipografia, caligrafia e lettering em seus trabalhos", destaca.

Exemplo de trabalho feito por Leonardo Buggy Foto: Arquivo pessoal

Ainda que esteja se tornando mais conhecido pelo público em geral, o design não é uma novidade. Leonardo, por exemplo, trabalha profissionalmente na área desde 1992. Ele conta que, em 1998, "despertou" para a tipografia e fundou a primeira empresa nordestina do ramo, a "Tipos do Acaso". O reconhecimento veio em forma de prêmios nacionais e internacionais e foi natural seguir o caminho acadêmico. "Quando criança, nunca pensei em ser jogador de futebol, bombeiro, astronauta ou médico. Na verdade, não pensava em nada neste sentido. Porém, mesmo antes de atuar profissionalmente eu já flertava descaradamente com o design sem saber. Produzi incontáveis fanzines, cartazes de festas, capas de discos e fitas demo para bandas antes de realizar meu primeiro projeto de marca. É minha profissão e hobby. Mais do que isso, é meu jeito de ver o mundo".

"É minha profissão e hobby. Mais do que isso, é meu jeito de ver o mundo".Leonardo Buggy, professor do curso de design da UFC

Leonardo frisa que, como um apaixonado pelo desenho de letras, acha positivo o interesse pelo seu uso decorativo. "Particularmente, me sinto muito bem acolhido em um ambiente que dispõe deste recurso". No entanto, critica os problemas técnicos de trabalhos espalhados pela cidade. "É preciso compreender que, para além da mensagem escrita, as letras falam. Suas formas, cores e texturas comunicam mais do que se possa imaginar. Por outro lado, o crescente volume de trabalhos revela um querer fazer e consumir desenho de letras que deve ser visto como algo precioso. Quanto mais a população tenha contato com esta linguagem, mais cedo irá refinar seu gosto e será capaz de distinguir o bom do ruim". O professor destaca que o curso de graduação tem papel fundamental para os profissionais que querem atuar na área.

Rafael Studart e Leonardo Buggy são parceiros no projeto Trampo Foto: Arquivo pessoal

Além de professor, Leonardo se juntou ao arquiteto e urbanista Rafael Studart, nome por trás da marca cearense Tarugo, para desenvolver o projeto de arte e design coletivo intitulado Trampo Letras & C.O. "Desenvolveremos trabalhos juntos, mas não iremos deixar de lado nossas atividades principais. É algo para dar vazão a algumas de nossas criações que não encontravam espaço em nosso cotidiano. Para algumas ações, inclusive, convidaremos outros colegas, eventualmente", explica Leonardo.

Rafael Studart e Bianca Benedicto fizeram o mural Ame-o ou Ame-o no muro da Opa! Escola de Design Foto: Arquivo pessoal

"Buggy é um grande amigo e sempre ficamos trocando figurinhas de projetos que vínhamos desenvolvendo, ensaiando fazer alguma coisa juntos, sem saber exatamente o que seria. Quando decidimos colocar isso pra frente, as coisas aconteceram muito naturalmente, aliando o profundo conhecimento dele em tipografia e design gráfico com os meus de projeto e construção de objetos. Os trabalhos que estão por vir da Trampo vão mostrar bem essa interseção de mundos", completa Rafael, que reforça que a transição do mundo da arquitetura para o design aconteceu de forma natural.

Transição natural

O profissional explica que desde muito cedo se envolveu na produção de mobiliário, já que sua mãe tem uma marcenaria. "Acredito que isso tenha sido fundamental para os caminhos que escolhi depois da graduação, como os cursos de marcenaria clássica e o de design de mobiliário no IED (Istituto Europeo di Design), em Milão. O verbo to design em inglês significa projetar, então essa transição da arquitetura para o design foi muito natural, em especial por que em ambos os campos estamos a procura de solucionar problemas através de projetos. É preciso desconstruir a conotação pejorativa que a popularização do termo design agregou ao mesmo. Design não é supérfluo, design é essência".

"É preciso desconstruir a conotação pejorativa que a popularização do termo design agregou ao mesmo. Design não é supérfluo, design é essência"Rafael Studart, arquiteto

O arquiteto ainda reforça que, com o projeto Trampo, ele e Leonardo Buggy querem mesclar arte e design. "Vamos passear pelos dois campos de forma fluida, sem muitas restrições quanto à técnica ou aplicação. Acredito que é a mistura que enriquece nossa linguagem".

Novos talentos

Entusiasta da caligrafia, lettering e tipografia, Bianca Benedicto se graduou em Audiovisual e Novas Mídias, no entanto acabou mudando de rumo e, hoje, atua no mercado do design. Ela se sentia incompreendida em fazer cinema e acabou migrando dos sets de filmagens para fazer os cartazes dos filmes e os letreiros dos créditos. Ainda fez um curso de design gráfico e uma pós-graduação, também em design.

Bianca Benedicto atualmente mora em Porto, cidade de Portugal, onde faz mestrado Foto: Arquivo pessoal

"Paralelo a isso, aconteceu em 2013 um curso de caligrafia, produzido pela Mandacaru (estúdio de design gráfico baseado em São Paulo). Era um projeto lindo, que oferecia cursos gratuitos em várias cidades. Fiz a inscrição, mas você tinha que ser sorteado para participar. E eu fui. Fiz o módulo com o [designer] Cláudio Gil, meu mestre calígrafo. Depois fui procurando outros cursos e não parei mais".

Em Fortaleza, ela também ministrou um curso chamado "gambiarra caligrafia" tanto no Porto Iracema das Artes, como na Opa! Escola de Design e na Universidade Federal do Ceará. "Eu ensino a construir uma pena artesanal e a partir dela, os alunos treinam um alfabeto, a escrita fundamental".

Foto: Reprodução/Instagram

Atualmente, a profissional mora em Porto, cidade de Portugal, onde faz mestrado em design gráfico e projetos editoriais. A ideia, de acordo com Bianca, é se capacitar, voltar a estudar, além de se focar nos projetos pessoais e aprimorar suas habilidades. Porto, além do mais, é uma cidade que cresce no ramo do design.

Dentre os trabalhos nos quais nutre um carinho especial está o muro da Opa! Escola de Design, que pintou em parceria com o arquiteto Rafael Studart. "Foi durante uma edição do Festival Concreto. O meu processo com o Rafa é massa, porque a gente se completa. Ele é arquiteto, então faz as linhas retas como se fosse a coisa mais simples, já eu faço as curvas. O trabalho foi um misto dos dois". Quando voltar, ela tem vontade de dar continuidade ao projeto. "Eu gosto de compartilhar conhecimento, mas tenho que aprimorar minha didática. Um pouco desse processo também me motivou a fazer o mestrado".

Foto: Reprodução/Instagram

Bianca também fala que aprecia o movimento que acontece em Fortaleza, do público em geral que está valorizando cada vez mais as vertentes da caligrafia. No entanto, alerta que é preciso cuidado. "É difícil dizer um preço, ou melhor, fazer o cliente aceitar que aquele preço é o justo pelo investimento que você já fez pra chegar àquele resultado. As pessoas costumam dizer que 'é só escrever', mas não é. Eu percorri, e ainda estou percorrendo um longo caminho para 'só escrever'", desabafa.

Para os iniciantes ou que gostariam de se aprofundar no mercado, a profissional também alerta que os cursos presenciais são melhores. No entanto, as aulas online também podem ajudar. Ela indica sites como o Skillshare, Domestika e Designifca.

Hobby que virou trabalho

Laura Holanda está no mercado de trabalho há cerca de um ano e começou a apostar no lettering e chalkboard (arte em giz) incentivada por um amigo. Graduanda em Publicidade & Propaganda, trabalhava em agências locais e precisou de coragem para deixar de lado o cômodo e apostar no, até então, hobby como seu principal ganha-pão.

Laura Holanda transformou o hobby em ganha-pão há um ano e tem um grande número de clientes Foto: Arquivo pessoal

"Comecei postando despretensiosamente alguns desenhos no Instagram, até que algumas pessoas me perguntaram se eu fazia sob encomenda. Óbvio que eu respondi que sim! Depois que fui atrás de comprar todo o material necessário. Após as encomendas de quadros, veio o chalkboard, além de outras peças. Acho que o lance é se manter sempre curioso. Testar técnicas e materiais novos e nunca se acomodar".

Ensaio sobre autoestima com lettering de Laura Holanda Foto: Israel Machado

"No meu caso, o lettering complementa o chalkboard, dando origem ao chalklettering", complementa a profissional, que destaca que o feito à mão tem ganhado uma valorização "fora do comum", o que também tem impulsionado o mercado.

"As pessoas e, consequentemente, donos de estabelecimentos, têm buscado cada vez mais uma identidade visual artesanal, feita com amor. Acho que vai até além de estética. É como eu costumo dizer: cada trabalho é desenvolvido de forma única. Ele carrega um pouco de mim e tudo do cliente, então todo cuidado com os detalhes é necessário".

Lettering em estabelecimentos comerciais também é um ótimo recurso para decoração Foto: Arquivo pessoal

"É complicado falar do mercado, pois estou na área há pouco tempo e tem uma galera boa no que faz aqui. No entanto, a percepção e a valorização da arte têm impulsionado o trabalho de muitos artistas locais. E eu me incluo nisso".

Laura confessa que fez poucos cursos para dar seus primeiros passos como designer, a maioria deles online. "Transformar um hobby em profissão pediu de mim muita coragem", justifica. É por isso que, entre seus planos, está o de desenvolver aulas para iniciantes. A profissional ainda cita dois nomes como suas principais referências, duas brasileiras, Marina Viabone e Aline Albino. "Se for pra indicar somente um perfil, sigam o @designspiration. Passo horas olhando o feed deles e o Pinterest".

A jovem ainda cita que ter bom relacionamento com os clientes, ser paciente e organizado são essenciais para construir uma carreira de sucesso. "Saiba escutar e também falar a sua opinião, afinal o artista é você. Seja firme quanto ao orçamento e maleável nas diversas formas de pagamento. Lembre-se de que o seu trabalho tem valor, sim, e, desvalorizá-lo cobrando preços irrisórios é também desvalorizar o trabalho de outros profissionais da área, que assim como você, estão na mesma luta".