Diário do Nordeste Plus

Lendas Urbanas,
onde a fantasia confronta a realidade

Histórias que ultrapassam gerações e permeiam o imaginário popular são constantemente reinseridas no espaço urbano para denunciar os anseios da sociedade

Histórias contadas nas calçadas, nas esquinas, causos transmitidos entre gerações, lendas que se perpetuaram na tradição do Ceará e de suas cidades. O imaginário popular dos cearenses é rico, cheio de histórias dos mais diversos gêneros: para assustar, para impressionar, com fundo romântico ou sobrenatural, nascidas no sertão ou nas periferias para denunciar a aflição de uma sociedade marginalizada.

Segundo o historiador Airton de Farias, as lendas urbanas são “atualizações de repertórios da tradição, que se articulam numa rede de cultura viva e móvel”. São histórias que, fictícias ou não, fazem parte das recordações de todo fortalezense e, que na atualidade se valem de outros suportes como o rádio, o jornal e a internet para se recriar.

Airton
Airton fala sobre a origem das lendas urbanas Foto: Fernanda Siebra

Até hoje, a chamada "perna cabeluda", por exemplo, é temida em alguns bairros da Capital cearense por aqueles que já ouviram falar dos chutes que ela aplicava em transeuntes noturnos. Quem viveu na cidade nos anos 80 de certo lembra do "corta bundas", indivíduo que, armado com uma navalha, tinha por hábito cortar nádegas femininas no bairro José Walter.

Airton defende que as lendas urbanas surgem a partir de uma mistura entre o imaginário religioso, marcado pelas crenças e princípios, e o folclore local, com influências da população que veio do ambiente rural e de moradores antigos da cidade, que presenciaram diferentes épocas durante suas vidas. As histórias acabaram reproduzidas, por meio da tradição oral, de geração para geração, tornando-se verdadeiras relíquias narrativas de Fortaleza.

"As lendas urbanas sempre existiram em todo ambiente urbano, até mesmo nos que possuem características de metrópole. O que faz com que elas se perpetuem é o caráter excêntrico e mirabolante dos mistérios. Isso chama a atenção das pessoas e começa a fazer parte dos contos fantásticos repassados entre os anos", destaca.

Conheça a seguir algumas histórias de arrepiar:

“Eu preciso ensaiar”

Bailarina azul
Muitos juram já ter visto a bailarina azul no TJA Foto: Fernanda Siebra

Sexta-feira, 17 de junho de 1910. A banda sinfônica do Batalhão de Segurança, regida pelos maestros Luigi Maria Smido e Henrique Jorge recepcionavam os elegantes homens de casaca e cartola com suas mulheres a tiracolo de chapéus de plumas. Na praça, rodas de fogo, morteiros, foguetes e girândolas num milagre pirotécnico, abrilhantavam a festa: foi com essa elegância que a alta sociedade de Fortaleza prestigiou a primeira noite em que o Theatro José de Alencar levantava suas cortinas no início do século XX. De lá para cá somam-se 105 primaveras de alternância entre o riso, o horror e a curiosidade sobre o que paira nos corredores do complexo cultural com mais de 12 mil m² de área.

Há quem diga que é lenda e há quem jure de pés juntos que ela existe de fato. Não se sabe ao certo como ela surgiu ou de onde veio. Ninguém atreveu-se a lhe dar um nome, nem mesmo enfrentar a misteriosa Bailarina Azul cara a cara, pelo menos não em sã consciência. “No aniversário de 90 anos do teatro houve uma grande festa, e nela um fato de arrepiar”, recorda Selma Santiago, diretora do TJA. “Na ocasião uma artista foi convidada para encenar a bailarina. Após o espetáculo, o público se dirigiu ao jardim para uma confraternização. Houve música, dança e muita alegria naquela noite. Um dos nossos colegas do patrimônio, que estava com a sua família, conta que uma moça vestida de bailarina o tirou para uma valsa e, acreditando ser a artista que continuava com a roupa da encenação, aceitou de pronto o pedido. Dançou, conversou, riu e voltou para o seu local. Horas depois, no fim da festa, percebeu que a artista não estava mais com a roupa de bailarina, mesmo assim se aproximou para se despedir e agradecer pela dança. Porém a artista disse que não foi com ela a dança e acrescentou que logo após o espetáculo ela rapidamente trocou a vestimenta e desceu para a festa no jardim”.

Realidade ou fruto da imaginação? Segundo relatos de funcionários e artistas, a linha que separa essa dualidade é muito tênue. O técnico em maquinaria, Gadelha Viana é sempre o último a deixar o teatro, a rotina já vai para mais de dez anos. “Outro dia, enquanto acontecia um evento no anexo, fui ao porão com um colega esperar um espetáculo que estava acontecendo por lá acabar. Sentamos no sofá para tomar um café e de repente aplausos vindos do palco principal, logo acima de nossas cabeças”, recorda. Gadelha garante que não haveria como ter uma pessoa lá. “Tudo estava fechado antes. Nos perguntamos se seria possível alguém entrar para pregar um susto em nós, mas não tinha ninguém, era noite já. Novamente o som ecoou e eu já estava disposto a jogar meu café quente em quem aparecesse pela frente. A coragem de ir até o palco faltou”, ri. Poderia ser um som qualquer, um gato que escapuliu e entrou teatro adentro fazendo barulho, uma peça mal encaixada rangendo, mas para a imaginação dos maquinaristas aquilo era uma manifestação clara que a Bailarina Azul estava numa apresentação. Pela terceira vez, o “plac-plac” foi ouvido e então “pernas para quê te quero?, corremos muito, sem olhar para trás”, acrescenta Gadelha.

A lenda da Bailarina Azul se funde com a história centenária do majestoso TJA. Misticismo, sedução e dramas se unem num embaraçado novelo de histórias reais e fantásticas em prol das memórias do TJA.

Dias de cão

Cão da itaoca
Possível casa do Cão da Itaoca Foto: Fernanda Siebra


“Os retratos e as panelas caíam da parede, o bebê que era colocado no quarto aparecia no pé de quiabo no quintal, a mobília da casa voava, era um reboliço só”, recorda a professora aposentada Ivone Dias Coelho, que ainda era criança quando testemunhou os chororós e quiprocós de dona Ferreirinha, proprietária da casa onde supostamente o “coisa ruim” se manifestou. A casa resistiu aos fenômenos sobrenaturais e a dura ação do tempo, e fixa-se à atual Rua Romeu Martins no bairro Itaoca.

Nos idos de 40, a Itaoca ainda não tinha ruas nem pavimentação, somente becos de areial.

“Era uma casa aqui outra acolá. As coisas estranhas começaram a acontecer e acabavam reunindo no dia seguinte uma centena de curiosos, inclusive um repórter pra saber se o fato era verdadeiro. Se era o capeta mesmo”, relembra Ivone. O “demônio” que fez o maior salseiro numa casa do hoje Montese. Incendiava móveis, fazia guardaroupas dançarem, dava gargalhadas estridentes,soltava bombas de enxofre e fazia crianças babarem baba verde e pegajosa. Marcou época, levando multidões ao bairro.

Cão da itaoca
Dona Ivone conta as histórias que escutava sobre o “Cão da Itaoca” Foto: Fernanda Siebra

Ferreinha foi casada com um tenente da polícia chamado João Lima, não se sabe exatamente a relação do casal com espíritos de outro mundo mas as manifestações estranhas e inexplicáveis causavam pânico entre os moradores. A desordem era garantida a cada aparição do “tinhoso”. Ferreirinha, apavorada e com a filhinha a tiracolo, corria para a casa de dona Ivone em busca de consolo com sua mãe. “Eu não sabia exatamente o que elas conversavam porque eu era muito pequena, tinha quatro ou cinco anos na época. Mas a pobre coitada chorava muito”, relembra.

A lenda persiste em morar em cada esquina da rua Romeu Martins, antigo Beco da Itaoca. Cada morador da vizinhança tem um palpite. Há quem acredite na versão de que o “capiroto” seria o próprio coronel após umas doses de cachaça brava. Violento com a família, revestido de uma personalidade indomável - como um cão, ele batia na esposa e a filha corria para se esconder no armário.

Esta versão tenta explicar as lamentações de Ferreirinha e a desordem da casa. Algum tempo depois, a família mudou-se e não deixou rastros ou pegadas. A casa continua lá, com seus segredos e mistérios. Vez por outra um morador se aventura em habitá-la e, ela parece se recusar a receber hóspedes. O chifrudo abandonou de vez as terras itaoquenses, desde a mudança do casal para destino desconhecido.

Perna Cabeluda

Cão da itaoca
João Inácio explica a origem da “Perna Cabeluda” Foto: JL Rosa

Já ouviu falar no ditado "Quem conta um conto aumenta um ponto"? Exatamente assim aconteceu. Foi no programa de rádio do jornalista e apresentador João Inácio Júnior que a temida lenda da Perna Cabeluda ganhou popularidade. No quadro “A história que não foi contada”, o apresentador recebia cartas dos ouvintes e as lia durante a programação. Os escritos transbordavam dos mais diversos desejos, apelos e experiências vividas.

“Certo dia um ouvinte caminhoneiro nos escreveu para relatar uma experiência que garantiu ter vivido em uma de suas viagens pelas estradas desse Brasil. Segundo ele, uma perna bem cheia de cabelos começou a persegui-lo na estrada, assustado e sem saber o objetivo da perseguição resolveu escrever para saber se mais alguém tinha visto essa ‘coisa’”.

Dias depois as respostas à carta do caminhoneiro começaram a bater na rádio. Pessoas em diferentes partes da capital afirmavam ter visto a temida perna cabeluda. “As ligações começaram a ficar frequentes. Um dizia que tinha visto a perna, outros que tinham levado uma bela carreira dela, de tal forma que novos detalhes eram explorados e inseridos a cada depoimento e a população já estava amedrontada”, recorda o apresentador. De repente a perna virou assunto principal na rádio, nas calçadas, nas casas e até na igreja. O padre teve que incluir pedidos de calma entre os fiéis caso o encontro com a pernoca fosse efetivado.

“O interessante foi ver a reação das pessoas com alguns acontecimentos sejam eles sobrenaturais ou não. O quadro era aberto para contar qualquer tipo de experiência vivida. Aquela foi a experiência do caminhoneiro que nos escreveu e, de repente, outras pessoas se viram na pele daquele caminhoneiro”, relata.

Vista ou não pelos ouvintes, a Perna Cabeluda já virou cordel, filme, música e até figurino dos shows do pernambucano Chico Science que se apresentou várias vezes com uma perna cabeluda na mão em alusão à lenda.

Maníaco das bundas

Socorro Alves
Socorro Alves, vítima do maníaco, a mãe dela e o historiador Pedro Jorge contam como foram os anos de terror no José Walter Foto: Fernanda Siebra

Quem vê as portas e janelas cobertas por grades de ferro no Conjunto Prefeito José Walter, periferia de Fortaleza, não imagina que são tudo o que resta de uma série de acontecimentos terríveis no fim dos anos 1980. Lá agiu o corta bundas, um maniaco psicopata que atacava mulheres (adultas e crianças). Ele não matava, não roubava e nem abusava sexualmente das suas vítimas, apenas fazia um corte profundo com navalha, estilete ou bisturi na região das nádegas.

Foram três anos de pavor no bairro, entre 1984 e 1987, ninguém conseguia descobrir a verdadeira identidade do criminoso. O maníaco do José Walter ganhou ares de lenda urbana, ao ponto de muitas pessoas acreditarem que ele nem mesmo existiu. Mas quem morava na área, e principalmente quem teve as suas casas invadidas pelo corta bundas, lembra muito bem de tudo o que aconteceu.

A aposentada Raimunda Alves, 82, se viu aperreada. Mãe de oito filhos, cinco deles meninas, ela tinha que enfrentar o desafio de trabalhar fora de casa e cuidar das crianças. “A preocupação era com a segurança das meninas. As mulheres da rua se juntavam para preparar os lanches das equipes de homens que ficavam de plantão, se revezando para pegar o corta bunda no ato”, conta. “O danado parecia que tinha um pacto com o demônio. Não se ouvia barulho, nem as mulheres percebiam ele se aproximar. Nenhuma delas conseguiu ver o rosto dele”, acrescenta.

O corta bundas deu muito trabalho para a polícia que não conseguia pegá-lo e muito menos identificar o agressor. Causou revolta! Os homens do bairro se juntaram em equipes para vigiar as noites do José Walter. Nos portões e janelas das casas, panelas e sinos sensíveis a qualquer movimentação. Tudo em vão, foram mais de 70 mulheres atacadas, mas apenas três formalizaram a queixa e constaram no processo contra ele.

Dentre elas, Socorro Alves, uma das filhas de D. Raimunda. No ano de 1984, ela acabara de completar 19 anos e, estava no quarto cuidando da sobrinha quando dormiu. “Eu senti apenas um ardor. Achei que fosse aquelas lagartas de fogo, mas quando olhei para minha perna o sangue estava escorrendo. No hospital, o golpe que não conseguiu ser profundo por proteção da saia, foi extenso e levou 250 pontos.

Apenas em 6 de fevereiro de 1987, a policia consegue capturar Francisco Evandro Oliveira da Silva de 26 anos. Preso e reconhecido, Evandro confessou os crimes e acabou assassinado no Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira pelos próprios presos.

Na ponta da agulha

Você está fazendo compras distraidamente quando, de repente, alguém te surpreende e o aborda portando uma seringa hospitalar e o perfura com o objeto, cujo conteúdo é desconhecido.

Esse é o boato que corre entre trabalhadores e frequentadores do Centro de Fortaleza. A história do chamado "maníaco da seringa", que ameaça a população com o instrumento, foi motivo de três denúncias registradas no 34º Distrito Policial (DP) nos últimos cinco anos. Houve até uma prisão: de Francisco Nogueira, de 41 anos, acusado quatro vezes de ser o suposto "maníaco da seringa". Porém, por falta de evidências, ele foi liberado.

No Centro, mesmo os que não acreditam no mistério já ouviram falar do criminoso. As descrições, no entanto, variam de pessoa para pessoa. Alguns dizem ser um homem jovem, moreno e de baixa estatura. Outros relatam que o malfeitor é um senhor de idade, com seus 50 e tantos anos, alto e que anda pelas ruas com roupas sujas e descuidadas.

O único traço em comum que une todas as narrativas é a personalidade incógnita e sombria do suposto maníaco, característica que vez por outra levanta a poeira e desperta o pavor entre os transeuntes no Centro da cidade.