Diário do Nordeste Plus

Cerveja feita em casa

Apreciadores da bebida artesanal saem do trivial degustador e passam a ocupar o espaço de produtor

Para arqueólogos, a primeira cerveja produzida no mundo data de pelo menos 6 mil anos atrás. Os sumérios e os babilônicos foram os responsáveis pela produção do primeiro líquido alcoólico de grãos fermentados. Os egípcios contribuíram para, de fato, fidelizar a produção da bebida. Porém, só foi na Idade Média que a cerveja virou algo parecido com o que hoje consumimos, graças a utilização do lúpulo como ingrediente na conservação da cerveja.

No século XVI, através da Lei da Pureza da Baviera, foi estabelecido que a cerveja deveria ser produzida com quatro ingredientes básicos: água, malte, levedo e lupo. E a partir daí, a bebida ganhou ainda mais o mundo. Passou a ser popular, produzida em massa para a comercialização. E por atrair tantos apaixonados, a cerveja, que reúne apreciadores no mundo inteiro, passou a receber toques especiais pelos que conservaram as práticas



Já pensou, depois de um longo dia de trabalho, ir na geladeira e se servir de uma “cerva” feita por você mesmo? Os amigos Rafael Caneca e Fernando Pinheiro, sim!

Como bons apreciadores da loira, os jovens adoram degustar e produzir uma cervejinha em casa. A ideia de fabricar a bebida começou em 2014, quando Rafael leu uma reportagem sobre o assunto e decidiu testar. Para a proeza, o servidor público encomendou pela internet um kit que vinha com os utensílios e ingredientes necessários. "A primeira vez que produzimos a bebida foi olhando o passo a passo que vinha no kit, eu e o Bruno, outro amigo nosso. Deu certo, foram uns 14, 15 litros de cerveja. E daí, fomos testando, fazendo. Começamos a fazer lá em casa, mas nos mudamos depois, já que o apartamento tinha 70 metros quadrados e uma cozinha bem pequena. Até hoje, eu, o Fernando, o Eduardo e o Bruno fazemos, todo mês", destaca Rafael.

Rafael e Fernando
Amigos Rafael Caneca e Fernando Pinheiro degustando uma de suas criações Foto: Daniel Aragão

A prática seguiu entre os amigos como um hobby. Uma vez por mês, os quatro amigos se reúnem e produzem alguma cerveja. O momento serve para apreciação da bebida e das amizades. De 2014 para cá, o grupo já produziu mais de 10 estilos: American Pale Ale, India Pale Ale, Redale, Witbier, entre outras.

A partir das primeiras experiências, os rapazes foram testando, lendo, pesquisando e buscando dicas de como otimizar o tempo e o produto. "Se você quiser fazer uma cerveja seguindo o passo a passo, você faz. Mas, se você quiser entender o que está acontecendo, se você quiser fazer uma cerveja cada vez melhor, do jeito que você quer fazer, é necessário estudar. E se você estudar, você abre toda a gama do universo da cerveja", diz Fernando Pinheiro.

Assim como Fernando e Rafael, quem muito provou variedades de cervejas, uma hora sente vontade de se arriscar a fazer o seu próprio rótulo. Assim, a arte do “homebrewing (fabricação de cervejas em pequena escala para fins pessoais e não comerciais) ” vem se expandindo. Neudson Aquino é um dos apaixonados pela “loira”. Começou a produzir a sua própria há três anos. “Quando eu esbarrei com o assunto do "homebrewing" na internet me deu vontade de fazer minha própria cerveja. Me juntei com o amigo pra comprar o equipamento, e foi assim que eu comecei. De lá pra cá, produzi as minhas e já provei várias de amigos e conhecidos”, diz Aquino. Ele conta que aprendeu a prática sozinho após encontrar o livro “How to Brew”, do escritor John Palmer, considerado a bíblia do assunto. “Estudei de trás pra frente umas 3 vezes até me sentir apto pra tentar minha primeira produção”, diz.

Até agora, mais de 10 tipos já foram produzidos por Neudson, entre diferentes tipos, de cerveja de trigo a Stouts. Tiamat Imperial IPA; uma India Pale Ale com mais de 8% de teor alcoólico e bem amarga; a Carcará Session IPA; uma India Pale Ale mais leve, com menos de 5%, feita para o aniversário do blog cervejeiro de uns amigos, entre outras.

O gasto médio para produzir 20 litros de cerveja gira em torno de R$ 200 (ingredientes)

Aliás, as datas comemorativas sempre são momentos importantes para a produção. Foi com uma cerveja preparada para o aniversário de um ano da filha que Rodrigo Campos ficou entre os três primeiros colocados no Concurso Nacional das Associações de Cervejeiros Caseiros (Acerva), em 2015. A Munich Helles deu a Rodrigo o terceiro lugar no concurso. “Eu gostei tanto do resultado final que acabei guardando algumas garrafas e mandando para o concurso. Esse ano já estou pensando no que vou enviar”, afirma. A exemplo de Rodrigo, Rafael Caneca também optou por servir um rótulo diferenciado no dia de seu casamento. O brinde foi feito com uma American Pale Ale, ao invés da tradicional champanhe.

Casamento
Brinde do casamento foi feito com cerveja. Foto: Fábio Meireles

O caminho dos grãos

A primeira vista, o processo de produção pode assustar. Além de saber critérios de fermentação, resfriamento, inoculação da levedura, é necessário paciência e dedicação. Para ser produzida uma cerveja tipo Ale, a mais fácil de ser confeccionada, são necessárias de 3 a quatro semanas de preparação. Entre os processos estão: moagem (escolher o tipo de malte e moê-lo), brassagem ( processo de misturar a água e o malte sob a ação do calor), fervura (fervura do mosto, acréscimo do lúpulo) resfriamento (criar ambiente perfeito para a inoculação da levedura), fermentação (processo onde a levedura irá consumir os açucares e produzir álcool e gás carbônico) e evase (hora de engarrafar a “loirinha”). Dependendo do tipo de cerveja, o processo pode durar meses.



Para a produção, são necessários alguns “maquinários”, como baldes, panelas, termômetros, moedores, pás, refrigeradores, aparelhos que priorizem a liberação de ar, garrafas e, claro, os ingredientes malte, lúpulo, levedura e água. A combinação desses quatro insumos compõem a base da cerveja. “Para você fazer cerveja, vou precisar desses quatro. Você vai mudando a fermentação, o tipo de lúpulo e vai criando novas cervejas. Daí, à medida que você for fazendo, você vai colocando outros e vai criando outros tipos. A witbier, por exemplo, leva água, malte, lúpulo e levedura, casca de laranja e semente de coentro. Você vai experimentando os sabores e vendo. O mais legal é que você vê ‘isso não gostei, da próxima vou fazer assim’ e aí vai”, diz.

A sanitização e a fermentação são processos que devem ter total atenção

De acordo com os “mestres cervejeiros”, para cada 20 litros de cerveja são necessários 25 litros de água. É uma média, já que boa parte vai embora no processo. A média de gastos com os ingredientes sai por R$ 200. O tempo para preparação gira em torno de um mês. Para a produção, vale chamar os amigos, parentes e conhecidos que gostem e apreciem a bebida para ajudar no processo.

De acordo com Rodrigo, para garantir que a cerveja saia no “ponto ideal”, é necessário ficar atento a duas coisas: fermentação e sanitização. “É necessário garantir que não haja contaminação. Uma levedura inesperada pode estragar a cerveja, além de produzir outras coisas indesejáveis. Se for pra focar em algumas na hora da produção da cerveja, foque nessas. Usar uma levedura boa, saber a quantidade correta, também são boas práticas que garantem a boa cerveja. Há uma frase curiosa que diz que o cervejeiro não faz a cerveja, faz o mosto. Quem faz são as leveduras”, destaca. Além disso, é importante ter cuidado com a temperatura, tanto no processo de resfriamento, quanto na fervura. Se estiver muito quente ou muito frio, o trabalho das enzimas e da levedura pode ser comprometido.

Apesar de parecer trabalhoso, o processo é visto como um hobby. Para o cervejeiro e blogueiro (lupulento.com.br) Felipe Vitoriano, a satisfação em produzir a própria cerveja ultrapassa qualquer "trabalheira". Produtor da própria bebida desde 2014, quando começou a fabricar ao lado de amigos e do irmão Erick Vitoriano, Felipe destaca que, entre uma das grandes vantagens da produção caseira, está a melhor conservação do produto. "A produção pode ser trabalhoso, mas é satisfatória. Além disso, por ser produzida em casa e não passar por longos processos de entrega, a cerveja fica mais conservada, o sabor, por exemplo, fica bem mais fiel ao que foi produzido anteriormente. Felipe produz uma média de 15 litros de cerveja por mês. Ao longo dos anos de produção, mais de 10 rótulos diferentes foram feitos pelo estudante de arquitetura. O destaque vai para a Imperial Indian Pale Ale, com 9% de álcool.

Casamento
Irmãos Felipe e Erick Vitoriano no preparo da cerveja. Foto: Kiko Silva

Combinando sabores

Engana-se quem pensa que a harmonização de sabores é limitada ao vinho. A “loira” pode reservar agradáveis surpresas ao paladar dos amantes da bebida, criando uma experiência gastronômica incrível. É o que garante os nossos mestres cervejeiros. De acordo com Rodrigo, existem muito mais opções de cerveja, muito mais sabores do que o universo do vinho, o que traz uma gama maior de combinações. “Inclusive com alguns alimentos que geralmente o vinho não combina. Além de outros aspectos, a cerveja tem o gás. A carbonatação tem um papel muito importante, ela limpa a gordura da língua e a prepara para perceber os sabores da nova garfada, uma das vantagens sob o vinho”, destaca.

O tipo de copo certo implica na preservação dos aromas da bebida

Rodrigo
Rodrigo e alguns dos rótulos produzidos. Sabores que casam com outros. Foto: Thiago Gadelha

Algumas regras básicas devem ser levadas em questão na hora da harmonização. Segundo os especialistas, a cerveja tem que completar ou contrastar com os sabores. Para Fernando Pinheiro, a dica é casar uma cerveja forte com uma comida semelhante. Por exemplo, um churrasco, um hambúrguer pode ser apreciado com uma Indian Pale Ale. Uma Stout com um bolo de chocolate. As opções mais leves, como uma witbier, podem ser combinadas com pratos orientais.

“Qualquer prato vai ter uma cerveja no mundo que é perfeita para aquele teu prato. E, no meu ponto de vista, a cerveja é uma bebida muito mais complexa do que o próprio vinho. Porque o vinho você sabe o que esperar. Você pode variar entre um vinho doce ou um muito seco, um carbonato, um espumante.O malte pode ser torrado ou não, em várias temperaturas diferentes, ter o gosto de café, de chocolate. Até água vai dar um toque diferente", ressalta Fernando Pinheiro.

Outro fator que também pode influenciar na degustação é onde a cerveja vai ser servida. O copo pode exercer grande influência na degustação. “O aroma e o sabor da bebida podem ser afetados. Por exemplo, copos com a boca mais estreita conseguem preservar melhor o sabor para certos tipos de bebida”, destaca Rodrigo.


Tem espaço no Ceará

Mesmo que de forma um pouco tímida, a produção de cerveja caseira vem crescendo no Ceará. É o que vem garantindo a Associação dos Cervejeiros Artesanais do Ceará. A sede do Ceará, que já tem três anos de criação com intensifação das atividades no último ano, foi criada para promover o hobby e ajudar os cervejeiros a melhorarem a qualidade do produto. De acordo com Rodrigo Campos, presidente da Acerva-CE, a produção de cerveja caseira vem crescendo no Ceará. “Basta olhar os encontros da associação. Em 2015, eram bem menor. Hoje temos 68 sócios. Mas nós temos mais pessoas que participam do encontro, mas não se associam”, destaca Rodrigo.

Apesar de relativo, o tempo mais comum de produção da bebida gira em torno de 3 a 4 semanas

Para ajudar na missão, a associação organiza eventos sociais e técnicos, palestras e encontros. O destaque vai para o Cervão, onde os produtores levam as suas produções para serem avaliadas por outros cervejeiros. Lá, são discutidas dicas de como melhorar a bebida, o que pode ser feito no processo de fabricação e uma troca de experiência em geral. O evento acontece entre dois e três meses. Em 2016, a associação participou do Carnaval com o bloco Deixa Acerva Rolar, onde foram distribuídos 400 litros de cerveja artesanal.

De acordo com Neudson, só haviam mais uns 2 ou 3 cervejeiros caseiros aqui em Fortaleza em 2012, ano em que começou. De lá pra cá deu um verdadeiro boom. A regional da Acerva (Associação dos Cervejeiros Artesanais), já tem dois anos de atividade, e nesse carnaval fez um festa com 400 litros de cerveja caseira. “Temos cervejeiros caseiros mandando muito bem, ganhando prêmios por aí, temos opções de curso de produção e as primeiras lojas insumos aparecendo. Ou seja, é uma cena em franca expansão”, destaca.

A demora na chegada desse tipo de hábito no Nordeste se dá por vários motivos, entre eles a cultura. A presença de imigrantes europeus no Sul do País levou à região o costume de produção de suas próprias bebidas, – isso vale para o vinho e para a cerveja. São muitas as microcervejarias espalhadas na Região Sul. Blumenau, em Santa Catarina – conhecida como a “Europa brasileira” e cidade-sede da Oktoberfest –, reúne mais de uma dezena delas.

Caseira ou artesanal?

Em tese, o termo correto pra cerveja feita em casa, seria artesanal, já que o processo é realmente artesanal. Mas pra se diferenciar das cervejas de massa, as microcervejarias acabaram adotando o termo "artesanal". De acordo com Neudson, pra não confundir com o produto desses locais, os cervejeiros que não fazem o produto para fins comerciais chamam de cerveja caseira. “Mas o resultado final é bem próximo. Quase todas cervejas caseiras que tomei não deixam nada a dever pras artesanais, algumas sendo até bem superiores”, afirma.

Com a mão no malte

Malte
Ingredientes podem ser adquiridos em sites, uma facilidade para quem está começando a se aventurar na alquimia. Foto: Daniel Aragão

Para quem quer se aventurar no mundo das cervejas caseiras, a dica é, primeiro, experimentar os sabores. Comprar cervejas artesanais pode ser uma boa. Elas podem ser adquiridas em supermercados e lojas especializadas. Depois, é comprar os materiais e ir testando. Como uma verdadeira alquimia, é necessário que o candidato a futuro cervejeiro vá experimentando os sabores e modo de fazer. É provável que na primeira tentativa a bebida não saia tão fiel ao esperado. Mas o importante é continuar testando e estudar sobre o assunto, ler e pesquisar sobre o processo de produção.

Outra opção são os cursos oferecidos pela Acerva-CE sobre a confecção e peculiaridades da produção caseira de cerveja.

Serviço:
Acerva - CE
Site: acervacearense.com.br
Facebook: paraquevocerveja