Publicado em 05.06.2017

SIM
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QUENTE
FRIO
ROSA
AZUL
HOMEM
MULHER

Ao longo da vida, aprendemos a classificar as coisas de forma binária, e quando se trata de gênero essa máxima é ainda mais verdadeira. “Rosa” ou “Azul”. “Boneca” ou “Carro”. “Não gosta de futebol” ou “Gosta de futebol”. No entanto, a sociedade tem cada vez mais visto que as pessoas TRANScendem essas nomenclaturas e classificações.

No dicionário a palavra "trans" é um prefixo que significa “além de” e "gênero" é o que identifica e diferencia homens e mulheres. Logo, transgêneros são aqueles que vão além do conceito de masculino e feminino.

Os transgêneros, ou chamados transexuais, são aqueles que nasceram com um determinado sexo biológico, mas não se identificam com ele. Essas pessoas se reconhecem como sendo do sexo oposto ou como não sendo de nenhum dos dois sexos.

São indivíduos com trajetórias de luta, em busca de se conhecer e conseguir ter a própria identidade aceita. Conheça a história dessas pessoas e entenda mais sobre o assunto nesta edição do Diário Plus.

Uma alma feminina em um corpo masculino

Ir à escola, andar na rua, sair com os amigos. Essas são atividades rotineiras para muitas pessoas. No entanto, para Bárbara de Queiroz, de 41 anos, durante boa parte da vida não foi tão simples assim. Bárbara é uma mulher transgênero que por medo e preconceito, em alguns momentos da vida, se privou do convívio social. Aos 16 anos ela abandonou a escola por não aguentar a discriminação que sofria. “Eu tive que parar porque era muita pressão, a ponto de chegar quase à agressão. No colégio ficavam me chamando de viado; eu sofria muito”.

A história de Bárbara é igual à de muitos transexuais. A violência psicológica e física sofrida por eles os afasta do ambiente escolar. Além dessas agressões, discriminações cotidianas, como a negativa do uso do nome social (denominação pela qual preferem ser chamados) e a proibição de frequentar o banheiro reservado ao gênero de identificação são obstáculos adicionais.

Seja por desconhecimento ou por preconceito, a ausência de aceitação inicia, muitas vezes, ainda dentro da escola. Segundo a pesquisa “Juventudes na Escola, Sentidos e Buscas: Por que frequentam?”, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), 2,5% dos jovens entre 15 a 29 anos não querem ter uma pessoa transexual na classe.

Um estudo realizado pela Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT), divulgado em dezembro de 2016, mostra que 73% dos estudantes que não se declaram heterossexuais no Brasil já foram agredidos verbalmente na escola. Essa violência e o medo de que ocorra algo pior afastam muitos transexuais do ambiente educacional e distanciou Bárbara.

Foto: Pedro Campos
“No meu ponto de vista você nasce gente, você não nasce nem homem nem mulher. Você nasce gente, careca, sem dente”
Bárbara de Queiroz sobre acreditar que Identidade de Gênero é uma imposição da sociedade

Diante da evasão escolar, as oportunidades para os transexuais são poucas e muitos outros percursos da vida vão se tornando mais complicados. “É difícil. Eu tenho que me descobrir em meio a uma avalanche de preconceito. Imagina como fica a cabeça de uma pessoa assim. Você tem que se descobrir sexualmente, tem que saber como dizer para a família, sofre agressões e em meio a todo esse burburinho você tem que conseguir ainda se descobrir profissionalmente. É muito complicado”, diz Bárbara. Ela carrega a frustração de ter parado a escola e, por isso, não ter tido a oportunidade de fazer uma faculdade como sempre sonhou.

“No meu ponto de vista você nasce gente, você não nasce nem homem nem mulher. Você nasce gente, careca, sem dente”, conta a mulher sempre sorridente, que transmite garra no olhar. Aos cinco anos de idade, Bárbara percebeu que não a agradava a figura masculina que via no espelho. Em um determinado momento, ainda na adolescência, passaram a chamá-la de Marina, como forma de irritá-la. “Me batizaram por um apelido. Me chamavam de Marina, mas eu não conseguia me ofender”. Ser chamada de Marina, para ela, era um alívio e não uma forma de preconceito, pois era como uma mulher que ela se via. O que a magoava era outras formas de preconceito que sofria, como a de ouvir xingamentos pejorativos e ser excluída pelas demais pessoas, mesmo quando ainda nem entendia o que se passava com ela.

“Eu não conseguia me sentir bem vendo aquela imagem masculina no espelho, eu não conseguia associar aquela imagem, ao que tinha dentro de mim"

A pergunta simples e banal para todos de “Qual é o seu nome?”, para Bárbara, sempre teve um peso maior. Ela passou 40 anos sendo registrada com o nome de batismo, o de homem, o que não correspondia à sua figura feminina e causava transtornos.

Finalmente, no papel, o que Bárbara sempre sentiu: ela é uma mulher Foto: Pedro Campos

Bárbara foi a primeira transexual a conseguir, no Ceará, mudar o sexo no registro de nascimento; as decisões anteriores mudavam apenas o nome. Em seus documentos, constam que ela é do sexo feminino. “Eu trazia comigo muita culpa porque não me encaixo no padrão. Quando eu recebi o parecer da juíza joguei fora essa culpa. É como se ela dissesse pra mim 'é verdade, você de fato é uma mulher'”.

“A mulher não é só o sexo feminino. (...) Depende muito da tua concepção. Se a gente entende essas questões de gênero, então a gente sabe que o gênero é uma construção social. E se é uma construção social, a gente vai ter mulheres com vários corpos"
Débora Brito, ginecologista e especialista em questões sexuais

Aos 30 anos, Bárbara tentou fazer o caminho inverso, procurou voltar a ser homem e até cortou o cabelo. Mas isso só gerou mais transtornos. “Eu não conseguia me sentir bem vendo aquela imagem masculina no espelho, eu não conseguia associar aquela imagem, ao que tinha dentro de mim. Eu nasci para ser uma mulher, que seja biológica, que não seja, sou uma mulher”.

Bárbara ainda quer fazer a cirurgia de redesignação sexual. “A genitália que eu trago em mim é um câncer que vai me matando. Tenho toda uma depressão por conta dessa inadequação do meu corpo”. Quando fala em sonhos, Bárbara diz: “Eu só sonho em envelhecer com dignidade, sendo aceita e respeitada. Eu sou apenas uma pessoa que nasceu no corpo errado”.

Como mudar o nome e o gênero no Registro Civil?

Aquilo que se vê muitas vezes não corresponde ao que se encontra no registro civil de milhares de transexuais Brasil afora. O incomodo que Bárbara sentia é consequência de situações nas quais ela, enquanto figura feminina, apresentava um documento com nome masculino e passava por constrangimentos.

A defensora pública Sandra de Sá conta que nos anos de 2015 e 2016, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública ajuizou cerca de vinte e cinco ações de mudança de nome no registro de nascimento. “Aquela pessoa não se sente bem com o nome que ela vê ali nos documentos. Ela quer ser identificada socialmente da mesma forma que ela se identifica”, diz a defensora.

“É um direito inerente à personalidade, algo que vem do direito natural. (...) não é obrigatória a cirurgia de mudança de sexo para haver a alteração de mudança de nome e gênero”
Sandra de Sá, defensora pública

Para dar entrada no pedido de retificação do registro civil, fazendo constar o nome de uso social e o reconhecimento do gênero, é possível procurar a Defensoria Pública, no Núcleo de Direitos Humanos, munido de documentos básicos como RG, CPF e material probatório que mostre que o indivíduo não se identifica com aquele nome e gênero de nascimento. Os materiais probatórios são testemunhas, laudos médicos e documentos que contenham tudo que possa mostrar que a pessoa não se identifica com seu sexo biológico.

Após dada a entrada, o processo vai para o Poder Judiciário onde será dada a sentença. A defensora Sandra de Sá lembra ainda que o Direito à Identidade é um princípio jurídico. “É um direito inerente à personalidade, algo que vem do direito natural. E os tribunais já entendem, em jurisprudência, que não é obrigatória a cirurgia de mudança de sexo para haver a alteração de mudança de nome e gênero”.

Marcas que ficam

O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e dezembro de 2016, o mundo registrou 2.343 casos de mortes destas pessoas, sendo 938 mortes no Brasil, o que representa pouco mais de 40% dos casos, segundo pesquisa da organização não governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU). Quando se observa os demais países do mundo se percebe a situação do Brasil ainda mais grave.

O Brasil mata 3 vezes mais travestis e transexuais que o 2º colocado do ranking, México

O Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil, da Secretaria de Direitos Humanos, apontou o recebimento, pelo Disque 100, de 3.084 denúncias de violações relacionadas à população LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), envolvendo 4.851 vítimas, no período de um ano. O documento de 2012 é a fonte mais recente de dados oficiais do governo sobre a violência LGBTT.

Sexualidade e Identidade

As coisas que eram de menina nunca agradaram Daniel que também não se sentia completo como lésbica FOTO: Nah Jereissati

Imagine olhar no espelho e sentir que não importa quanto tempo passe, o que você coloque no seu corpo, as roupas que use, o que você vê nunca é o que gostaria. É assim que o jovem Daniel Freire, de 22 anos, descreve boa parte de sua infância e adolescência.

Ele nasceu com sexo biológico feminino, mas descobriu que não se identificava com esse gênero. Na infância, se apaixonou por uma menina e começou a perceber que tinha algo de diferente. “Eu não gostava das coisas que eram de meninas. A primeira vez que eu senti atração por uma menina foi na alfabetização. Eu não sabia lidar com aquilo, achava que era anormal. O tempo passou e eu me assumi pra minha família, como lésbica, mas eu fui percebendo que não era aquilo, que faltava alguma coisa, que eu estava incompleto.”

Ser transexual é diferente de ser homossexual e é por isso que, mesmo sendo lésbica, Daniel, ainda se sentia incompleto.

Identidade de gênero
Orientação sexual

O jovem, assim como boa parte dos transgêneros, não tinha conhecimento do que era a transexualidade. Foi com a ajuda de uma ex-namorada que ele foi se descobrindo. “Ela falou pra mim que ia passar uma semana me tratando com pronomes masculinos. Depois dos sete dias, gostei daquilo, vi que era aquilo que eu era".

Como tantos outros, Daniel começou a usar hormônios clandestinamente, já que queria ter o corpo masculino, o que condizia com a sua cabeça, porém tinha medo de ir ao médico e sua família descobrir o conflito que estava vivendo. “Eu tinha receio de contar para os meus pais, não sabia qual ia ser a reação deles, então eu não ia no médico. Estava insatisfeito comigo mesmo e comecei a recorrer ao mercado negro".

Em um dado momento, o jovem não conseguia mais conviver escondendo quem realmente era. Além disso, temia os riscos da automedicação e foi então que acabou contando para a mãe. A resposta dela ele nunca esqueceu: “O que você precisa para perceber que eu vou sempre estar com você?”.

Com o início do tratamento adequado, logo Daniel foi percebendo a mudanças no corpo. “A minha voz mudou, passei a ter pelos pelo corpo, até mesmo a gordura foi se direcionando, passando pra barriga. Senti que aumentou minha força física, meus músculos.”

A transição passa não só pela manipulação de hormônios, mas também por acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Além do acompanhamento clínico dos médicos, Daniel realizou a cirurgia de retirada da mama. No entanto, ele não tem intenção de fazer a cirurgia de redesignação sexual. “Eu estou bem com quem eu sou, não preciso mudar mais por enquanto".

Como funciona a transição?

A transição para um transgênero passa por diversas etapas e por vários profissionais. Uma pessoa transexual não precisa só mudar de corpo, até porque há quem seja transexual e não queira fazer a chamada cirurgia de readequação sexual, como Daniel. A médica ginecologista e especialista em questões sexuais, Débora Brito, conta que é necessário um tratamento completo: “É bem comum que os transexuais tenham ansiedade, depressão... Imagine todas as questões pelas quais essas pessoas passam, adoecem da pele, da barriga e precisam de vários cuidados".

Desde 2008, com a publicação da portaria nº 457, transexuais têm acesso aos procedimentos para garantir a cirurgia de transgenitalização e a readequação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A portaria nº 2.803, de 2013, ampliou o atendimento para homens e mulheres transexuais.

Em Fortaleza, existe o Atendimento Ambulatorial de Transtornos da Sexualidade Humana (ATASH), no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), que faz parte do SUS e possui psiquiatras e psicólogos. Porém, na capital, o SUS não realiza a cirurgia de redesignação de sexo. O ATASH é um centro que atende, além de questões ligadas à transexualidade, outras questões da sexualidade humana como pedofilia e zoofilia.

Uma mão amiga

Após a descoberta do indivíduo de que ele não se identifica com seu sexo biológico e aquilo o incomoda, vem a dúvida: e agora, a quem recorrer? Na Capital cearense, o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, equipamento ligado à Coordenadoria da Diversidade Sexual, da Secretaria de Direitos Humanos de Fortaleza, auxilia não só o público transexual, mas também lésbicas, gays, bissexuais e travestis, que são vítimas de discriminação, violência e/ou omissão e lesão de direitos, oferecendo assistência jurídica, psicológica e social.

O coordenador do projeto, Tel Cândido, conta que o Centro faz acompanhamento inicial dos indivíduos e os encaminha para a continuação desse auxílio, sendo na rede pública ou privada, de acordo com a situação social. “O Centro funciona como um articulador, uma porta de entrada, escuta, identificação. Trabalhamos no sentido do fortalecimento da autonomia da escolha daquele indivíduo”, diz Tel Cândido.

Serviço

Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana (ATASH)
Contato: (85) 3101.4348
Coordenação: Henrique Luz
Centro de Referência LGBT Janaína Dutra
Contato: (85) 3452.2047
E-mail: crlgbtfortaleza@gmail.com
Coordenação: Tel Cândido