Texto: Felipe Lima 08/05/2017

“Bandido bom é bandido morto”. A máxima que ecoa nas diversas rodas de conversas e que ganhou força com o advento das redes sociais aparece como a solução para o fim da violência e a punição para aqueles que cometem crimes. Porém, com um pouco mais de razão, o preconceito enraizado no discurso de milhares de pessoas pode ser substituído para “bandido bom (ou ex-bandido) é aquele que estuda”.

No Ceará, diversas unidades prisionais ofertam educação para pessoas privadas de liberdade. São aulas desde o ensino básico até a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Atualmente, cerca de 1.800 pessoas buscam trilhar novos caminhos por meio dos estudos.

A Secretaria da Educação do Estado (Seduc), em parceria com a Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus), garante a oferta de escolarização em unidades prisionais de todo o Estado. Hoje, há 54 salas de aulas em 50 unidades prisionais, localizadas em 42 municípios cearenses.

A oferta de escolarização nos presídios é efetivada por meio da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), fundamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de nº 9.394/96, art. 37, Lei de Execução Penal nº 7.210/84, art. 17 a 21 e Resolução CNE/CEB nº 02/2010.

Essa oferta atende ao que dispõe o Plano Estadual de Educação em prisões, elaborado em 2012 pelas duas secretarias do Governo do Estado, em articulação com diferentes setores envolvidos com os direitos da população carcerária e em cumprimento às determinações do Decreto nº 7.626, de 24 de novembro de 2011 da Presidência da República.

Projetos de ressocialização

Criada em 2012, a Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso (CISPE) da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado (Sejus) tem como missão colaborar para a recuperação social do interno por meio a capacitação e encaminhamento para oportunidades de trabalho remunerado. Ao longo dos últimos anos, diversas ações já foram implantadas.

No Ceará, as aulas dentro do sistema penitenciário iniciaram há 20 anos. A primeira sala de aula foi construída dentro do Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), localizado no município de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza.

De acordo com o assessor educacional da Sejus, Rodrigo Morais, a iniciativa partiu dos próprios internos. Hoje, com uma rede de estudos já regulamentada e distribuída pelo Estado, basta que o preso manifeste o desejo de estudar para ter acesso ao material didático e às aulas do EJA.

O desafio da Secretaria é promover a escolarização do maior número de internos dentro das unidades prisionais. Para a secretária da Sejus, Socorro França, a falta de estrutura e o impacto do comportamento promovido pelo enclausuramento aumentam as dificuldades para implementar uma educação de qualidade nos presídios. Apesar disso, ela é convicta que a liberdade - que vai além de estar fora da prisão - somente é possível por meio do conhecimento.

Para que os internos aproveitem as aulas e, a partir de então, tenham acesso a um mundo muitas vezes ainda inexplorado, a chefe da pasta afirma que a Sejus vem realizando esforços para que a educação chegue a todas as unidades prisionais.

Segundo a Seduc, a organização curricular que define as atividades nas salas de aula contempla todas as etapas da Educação Básica ao Ensino Médio, o que tem proporcionado não apenas a alfabetização daqueles que nunca estudaram, mas também a chance de ser aprovado no Enem e ocupar vaga nas instituições de Ensino Superior.

Para quem quer atingir voos mais altos, o Governo Federal disponibiliza a oportunidade de internos se candidatarem aos Enem para Pessoas Privadas de Liberdade, o Enem PPL. O edital do certame para 2017 já foi publicado e pode ser conferido aqui.

ENEM PPL

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Enem PPL, que é realizado em datas semelhantes ao certame comum, já obteve 205.800 inscrições desde sua criação, em 2011. Atualmente, todos os estados participam desse processo. No Ceará, foram 137 inscrições no primeiro e, já em 2016, o número de candidatos chegou a 1.427.

88,2%

dos inscritos são homens

SP

é o estado com maior número em 5 anos

2016

foi o ano com maior número de inscritos

1.427

foi o número de internos do CE que prestaram o Enem PPL

No Nordeste, o Ceará é o estado com maior número de inscrições desde 2011. Com 70.081 inscritos em 5 anos, São Paulo lidera entre os estados brasileiros. As informações foram obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação junto ao Ministério da Educação e Inep.

Porta de saída

Entre os candidatos, o exame é visto como a porta de saída da vida criminosa e a entrada para um curso superior. É o caso de Jorge Luís do Nascimento (32), Francisco Aucelin Sales Reis (30) e Jonas Silva Costa (25). Todos fazem parte da turma de Educação de Jovens e Adultos da Cadeia Pública de Caucaia.

Na Cadeia Pública de Caucaia, quase 90% estão estudando, segundo a Sejus (FOTO: Divulgação/Sejus)
Na Cadeia Pública de Caucaia, quase 90% estão estudando, segundo a Sejus (FOTO: Divulgação/Sejus)

Em uma sala com cerca de 50 cadeiras bem organizadas, jovens e adultos do sistema penitenciário do Ceará guardam nos livros a esperança da transformação. Entre réus primários que falam inglês e condenados com vasta ficha criminal que tiveram pouca oportunidade de estudar, a máxima "bandido bom é bandido morto" vai perdendo força.

No interior das paredes de concreto da sala da única sala de aula da Cadeia Pública de Caucaia, localizada na Região Metropolitana de Fortaleza, cerca de 90% dos detentos acreditam que a educação é o único caminho para uma nova vida. São homens que estão dando uma nova chance para si, para a própria família e, além de tudo, para a sociedade a qual eles prejudicaram.

Na sala com quase 50 colegas, Jorge Luís prefere não lembrar muito da vida pregressa. As mãos inquietas que um dia serviram para segurar uma arma hoje dão sustentação para que ele possa traçar caminhos por meio das palavras em seus cadernos e livros. Preso pela 3ª vez por crimes que vão desde assaltos ao tráfico de drogas, ele acredita que a sala de aula será a ponte para uma vida melhor.

"Eu estava em um mundo que não me levava a nada"
Jorge Luís do Nascimento

Ele ainda não sabe bem para que área deve prestar o Enem PPL, mas reforça que sua preferência é por história, pois acha importante conhecer os fatos que marcaram a formação do povo brasileiro. E o melhor, acredita que, mesmo na prisão, o sonho não ficará apenas nas páginas do caderno.

Jorge Luís acredita que seu empenho nos estudos vai proporcionar uma nova chance na vida (FOTO: Thiago Gadelha)
Jorge Luís acredita que seu empenho nos estudos vai proporcionar uma nova chance na vida (FOTO: Thiago Gadelha)

No meio do caminho apareceu uma pedra

Vinte e cinco anos, empreendedor e com conhecimentos em inglês e espanhol. O perfil de Jonas Silva Costa é digno de alguém que trilhou o caminho do sucesso profissional. No entanto, após um período de férias, ele passou a acumular dívidas e perdeu o controle comportamental. Começou a se envolver em brigas até praticar assaltos. A página do seu caderno ganhou uma mancha que precisa ser arrancada.

"Educação muda tudo. Através do estudo eu estou vendo o outro lado”
Jonas Silva Costa

Apesar do ambiente prisional propiciar violência e o surgimento de regras consuetudinárias que, muitas vezes, são contrárias à humanização do interno, Jonas afirma que aprendeu e quer retomar um cotidiano digno que estava construindo até ser preso. Réu primário e esperando decisão da Justiça, ele se apega aos livros para garantir um direito que ainda não foi lhe tirado: o de estudar. Conhecedor das mais vastas terras do Ceará, acredita que se especializar em geografia vai o ajudar a retomar o trabalho.

Jonas quer resgatar, por meio da educação, o futuro brilhante que estava construindo (FOTO: Thiago Gadelha)
Jonas quer resgatar, por meio da educação, o futuro brilhante que estava construindo (FOTO: Thiago Gadelha)

Chance de dar a volta por cima

Fomentar a educação como a base para a construção de uma sociedade justa e igualitária não é novidade. Porém, como proporcionar isto a pessoas que tiveram seus direitos suspensos? A educação nos presídios, além de evitar “cabeça vazia”, pode dar ao preso a oportunidade de resgatar a dignidade e até mesmo a própria autoestima.

“Se você tiver uma oportunidade de mudar de vida, abrace esta oportunidade”
Francisco Aucelin Sales Reis

É com muita esperança que o carismático Francisco Aucelin Sales Reis se apega a seus livros do Ensino de Jovens e Adultos para que apenados tenham uma chance de dar a volta por cima.

Apegado à religião, ele demonstra uma verdadeira fé de Jó para tentar mudar de vida. O homem afirma que desde que recebeu um “chamado de Deus” dentro da cadeia, seu passado foi apagado como a borracha que corrige sua caligrafia, que é a única coisa que ainda insiste em ser tortuosa.

Transformando vidas

Na Cadeia Pública de Caucaia, uma das responsáveis por ajudar os internos a trilharem novos caminhos é a professora Ana Célia da Guia Teodósio (50). Pedagoga com Especialização em Educação no Sistema Prisional, ela já atua há 6 anos em prisões.

Acostumada a dar aulas na escola regular, ela afirma que os primeiros 15 dias foram desafiadores. O novo causava medo e espanto. Mas, aos poucos, Ana Célia foi identificando-se com a atividade. Hoje, afirma que não gostaria de voltar para a escola tradicional, pois realiza um trabalho que vai além da educação formal.

Para a pedagoga, poder ajudar no processo de transformação que tiveram suas vidas marcadas pelo crime é algo enriquecedor. Principalmente porque a educação em penitenciárias ainda é algo que está engatinhando, apesar de ser um direito previsto em lei, pois, em muitos estados, a prioridade é garantir a segurança dos internos e dos profissionais.

Educação é direito

Pensar em educação no sistema prisional, principalmente com a possibilidade de se ajudar detentos a chegarem no Ensino Superior, parece incompatível com o ambiente violento, em grande parte do País. As dificuldades são grandes, mas as possibilidades são muitas. É o que afirma a professora doutora em Educação Ângela Maria Bessa Linhares, titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).

“A educação nos presídios não constitui privilégio, mas direito de todos; e sabe-se que cerca de 70% dos detentos não completou o Ensino Fundamental, como orienta nossa Constituição. Ofertar a educação não é, contudo, a única tarefa a ser feita para a ressocialização do detento; o tratamento como um todo a ser recebido nas prisões, inclusive o direito ao trabalho ou a uma aprendizagem de trabalho, deverá ser tornado realidade”, explica.

Para a professora da UFC, também é importante que se possa pensar no trabalho como princípio educativo, articulando-o a aprendizagens educacionais, como já inúmeras experiências no mundo inteiro nos ensinam. “Além de pedagogicamente ser o melhor, sabe-se que a urgência de cada detento e sua ansiedade é muito grande, daí que o ensino formal deve acontecer mais articulado intimamente com os fazeres que lhes interessam do ponto de vista profissional. O trabalho aí não é punição, mas estudo da vida. Pois juízo moral se aprende com experiências práticas de cooperação e não com belos discursos. Se você for pesquisar, vai ver que a maior parte dos apenados não teve isso na família, nem nos outros grupos onde vivenciou experiências formadoras", comenta.

Atualmente, conforme disposto na Lei de Execução Penal, o preso poderá remir um dia de pena para cada 12 horas de frequência escolar. E isso pode ser um estímulo para os estudos. Além do que já é previsto na Constituição, as políticas oficiais do EJA, com a oferta de seus serviços regulares, inclusive e sobretudo nas prisões, é uma conquista social importante. Porém, explica que ainda há ajustes a serem feitos para que a formação de internos seja mais precisa.

“Não se resolve a questão educacional do sistema penitenciário tornando a sala de aula um lugar isolado de toda a política maior do Instituto Penal e fazendo destes lugares ambiente que se pegar explode e onde ninguém anda. Os institutos penais não devem ser regidos por pensamentos de segurança, embora ela deva existir; se são estabelecimentos educacionais, devem pensar em educação. E abrirem-se mais à sociedade e vice-versa”
Profª Drª em Educação, Ângela Linhares

"Ofertar uma educação justa e igualitária dentro do ambiente dos presídios passa pela necessidade de articulação do ensino com as várias dimensões do sujeito como a ético-moral, a afetiva, a educacional (que traz o trabalho) e a espiritual. Pois lá estão homens e mulheres em situação de sofrimento psíquico, desamparo afetivo e social".

Entre os projetos da Sejus para ressocialização de presos está o Livro Aberto, que prevê a remissão de até quatro dias de suas penas para cada livro lido (FOTO: Divulgação/Sejus)
Entre os projetos da Sejus para ressocialização de presos está o Livro Aberto, que prevê a remissão de até quatro dias de suas penas para cada livro lido (FOTO: Divulgação/Sejus)

Conseguir uma vaga em uma Instituição de Ensino Superior após prestar Enem PPL não é garantia para um interno ocupar um lugar na sala de aula. Dependendo da sua situação, como o regime o qual ele cumpre, enfrentará a burocracia da Justiça.

Ao longo dos últimos 5 anos anos, o MEC/Inep catalogou 6.830 inscrições de candidatos em todo o País por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que é o processo usado pelas instituições públicas de ensino superior para selecionar os candidatos aos seus cursos.

Deste total, 254 foram selecionados, mas somente 101 entraram nas universidades, conforme informações obtidas pelo Diário do Nordeste por meio da Lei de Acesso à Informação. Dos matriculados em IES no Ceará, 3 foram no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), 3 na Universidade Estadual (Uece) e 2 na Universidade Federal (UFC).

Já quanto ao número de internos que prestaram o Enem PPL e conseguiram bolsas para faculdades particulares de 2011 a 2016 o número é bem maior. Ainda de acordo com o MEC/Inep, 474 começaram a estudar após conseguirem boas notas no Enem PPL. Administração, Direito e Educação Física foram os cursos de graduação que receberam maior parte dos aprovados.

PROUNI 2011 a 2016

474 aprovados em faculdades particulares

73

Administração

44

Direito

37

Educação Física

De acordo com o juiz Cézar Belmino Barbosa Evangelista, titular da 3ª Vara de Execução Penal de Fortaleza, no caso de um apenado, que cumpre pena privativa de liberdade no regime semiaberto, ser aprovado em curso de Ensino Superior, ele deverá, por meio de advogado ou defensor público, formular um pedido de estudo externo/saída temporária perante o juízo de execução penal, com os seguintes documentos: comprovante do resultado do certame e comprovante de matrícula da instituição de ensino para a qual foi aprovado, onde, inclusive, conste o período e horários das aulas.

SISU 2011 a 2016

6.830

Inscritos

254

Aprovados

101

Matrículados

“Registra-se que, excepcionalmente, o juízo de execução penal poderá deferir pedido de estudo externo ao apenado que cumpre pena no regime fechado, em respeito ao processo de ressocialização”, reforça Cézar Evangelista.

Cézar Belmino diz que a liberação de um interno para cursar a graduação depende de variáveis (FOTO: Érika Fonseca)
Cézar Belmino diz que a liberação de um interno para cursar a graduação depende de variáveis (FOTO: Érika Fonseca)

Já quanto ao preso que cumpre pena privativa de liberdade no regime aberto, até então, o magistrado afirma que não é comum pedidos de estudo externo perante o juízo de execução penal, pois, a Lei de Execução Penal, por vezes, não é cumprida adequadamente quanto ao preso que está neste regime.

Contudo, com a Súmula Vinculante (SV) 56 do Supremo Tribunal Federal (STF), o juízo de execução penal pode substituir o regime aberto por estudo ou pena restritiva de direitos.

Quanto ao apenado que é beneficiado com o estudo externo, o juízo de execução penal poderá determinar que a liberdade seja monitorada eletronicamente por um período que é variável, de acordo com o comportamento e o perfil do detento. De acordo com a Lei de Execução Penal, quando se tratar de frequência em cursos profissionalizantes e de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída temporária para o estudo será o necessário para o cumprimento das atividades discentes.

No Ceará, cerca de 1.800 presos estão matriculados em programas educacionais (FOTO: Sejus/Divulgação)
No Ceará, cerca de 1.800 presos estão matriculados em programas educacionais (FOTO: Sejus/Divulgação)

As Varas de Execução Penal da Comarca de Fortaleza, por meio do projeto Aprendizes da Liberdade, uma parceria do Poder Judiciário com a Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado e a Secretaria de Educação, disponibilizarão um curso preparatório para apenados.

“Com isso, o juízo de execução penal espera que mais apenados sejam aprovados em cursos de nível superior, o que em muito contribuirá para o processo positivo de ressocialização. É importante salientar que tramita no Congresso um projeto que tem o intuito de promover modificações consideráveis na Lei de Execução Penal”, finaliza o titular da 3ª Vara de Execução Penal em Fortaleza.

Início de um novo ciclo

Quem já obteve a liberação da Justiça pode comemorar o início de um novo ciclo. Aprovado no curso de Engenharia de Aquicultura no Instituto Federal do Ceará (IFCE) de Aracati, José Ruy Barbosa (43) usou videoaulas e material didático disponibilizado na internet para se preparar para o Enem PPL.

Antes de ser aprovado para a graduação, Ruy cumpriu pena no regime semiaberto a partir de março de 2016 na Cadeia Pública de Aracati, unidade prisional localizada a 150 quilômetros de Fortaleza. O homem justifica que foi preso por ser ‘’levado ao erro’’, ao assinar documentos que omitiam o pagamento de impostos de uma empresa de veículos a qual ele era proprietário em Minas Gerais.

“Eu fui descobrindo o conhecimento através da minha curiosidade. Era uma modo de eu procurar uma saída”
José Ruy Barbosa, 43 anos

“Eu era totalmente leigo. Fui levado ao erro, um erro contábil. Se eu tivesse uma formação, jamais teria assinado algo assim. Na época, só me preocupava com meu trabalho. Meu erro foi não ter me preparado para ser um empresário, apenas para ganhar dinheiro", relembra o agora universitário.

José Ruy teve que retomar os estudos para sentir a importância deles na sua vida (FOTO: Arquivo Pessoal)
José Ruy teve que retomar os estudos para sentir a importância deles na sua vida (FOTO: Arquivo Pessoal)

Decidido a estudar para alcançar uma graduação e também obter remissão de pena, José Ruy passou a estudar de forma intensa 90 dias antes do Enem. “Comprei um material por R$ 29 e ficava baixando textos pela internet. Eu fui descobrindo o conhecimento através da minha curiosidade. Era um modo de procurar uma saída”, explica.

Longe dos estudos já há algum tempo, lembra que os primeiros dias foram bem difíceis, pois ele não conseguia assimilar os conteúdos. Porém, aos poucos, ele afirma que os resultados obtidos com simulados foram melhorando.

Agora José Ruy pensa em alçar voos mais altos e cursar Direito. Morando em Canoa Quebrada, no litoral cearense, ele acredita que o curso vai permitir que entenda as leis que o fizeram ser preso.

Presos de 42 unidades do Ceará dispõem de salas de aula (FOTO: Divulgação/Sejus)
Presos de 42 unidades do Ceará dispõem de salas de aula (FOTO: Divulgação/Sejus)

No ano de 2016, dos 13 internos aprovados no Programa Universidade Para Todos (ProUni), cinco eram de Aracati. Em 2017, um interno foi aprovado no Enem e três conseguiram certificação do ensino médio com a nota da prova. Lá, as aulas acontecem semanalmente, nos turnos da manhã e tarde, divididas por segmentos. O primeiro segmento corresponde às turmas de 1º ao 5º ano do ensino fundamental, e o segundo, às turmas de 6º ao 9º ano.

Página virada

Além daqueles que estão tentando um lugar ao sol e daqueles que acabaram de conseguir uma vaga em uma faculdade, há quem já tenha virado a página. É o caso de M., como vamos chamar o universitário que há cerca de 10 anos roubava até 30 carros por mês. A sua letra inicial vem como uma grande coincidência: mudança. Ele prefere não ser identificado.

M. teve uma infância e adolescência como a maioria das crianças de classe média. Estudava como um aluno dedicado. Gostava de matemática, mas parou de ir à escola, época em que entrou para o mundo do crime. Mal acompanhado, a escola que antes lhe abria portas, começava a fechar. Sem saber que estava em um caminho quase sem volta, M. começou fazendo pequenos assaltos. A intensidade foi aumentando. Ainda aos 19, ele foi preso.

Quase 10 anos depois de entrar para o mundo do crime, o jovem universitário acredita já ter virado a página (FOTO: Thiago Gadelha)
Quase 10 anos depois de entrar para o mundo do crime, o jovem universitário acredita já ter virado a página (FOTO: Thiago Gadelha)

Réu primário, penou com um grande número de audiências adiadas. Sofrendo no ambiente inóspito da cadeia, se ajoelhou e pediu ajuda divina: “Deus, se o Senhor me tirar daqui, eu nunca mais volto”, relembra.

"Estou vendo o que é que eu fiz, o que é que minha família e amigos passaram e estou dando a volta por cima"
M., 28 anos

Em uma cela para 6 detentos, M. dividia o espaço com mais de 10. Sem comida digna, refletia e ainda ouvia dos companheiros que ele não era para estar ali, pois seu ‘perfil’ não era de detento. “Vai estudar”, diziam.

Impactado por aquele submundo, M. começou a se apegar nos livros. Foi então que decidiu ficar confinado sem assistir novelas e até mesmo sair para banho de sol. Com habilidade em planilhas, montou um esquema de estudos. Cumpriu à risca. Decidiu que iria fazer o Enem.

Dois anos e 3 meses após ser preso, M. conseguiu a liberdade. Meses antes de sair, prestou o certame. Hoje, aos 28 anos, está na metade do curso de Administração e trabalha em um órgão público. Apesar de ter conseguido apagar as linhas tortuosas da sua vida, M. não costuma compartilhar com colegas seu passado. O preconceito é o principal motivo.

A educação em presídios é um desafio para professores e órgãos públicos. Apesar de todos os entraves, ainda existem rotas a serem trilhadas. É preciso dar amparo aqueles que se perderam na caminhada e libertá-los das grades que vão além das barras de ferro. Pode até parecer contraditório educação e encarceramento, pois enquanto o primeiro liberta, o segundo anula o ser humano.

No vazio provocado pelas prisões e a falta de projeto de futuro, pensar a educação como transformação do indivíduo implicará em pensar percursos educativos práticos, dentro de novas rotinas de vida. Sabe-se porém que isto não se faz da noite para o dia. Mas, com empenho daqueles que podem proporcionar reabilitação de presos, é possível trocar a cela pela sala.

'Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo'
(Paulo Freire)